sábado, 15 de janeiro de 2011

A hecatombe em Caraguatatuba - 1967

Caraguatatuba: o dia em que a serra caiu


No dia 18 de março de 1967, a cidade localizada no Litoral Norte foi arrasada por um deslizamento da Serra do Mar. Número de mortos pode ter passado de 500.




Caraguatatuba: após catástrofe, governo estadual criou a Defesa Civil.



" Onde está Caraguá? – perguntei a um grupo de bombeiros sobre um mar de lama.

- Aqui embaixo, sob seus pés – um deles respondeu.

Era sábado, tarde da noite, 18 de março de 1967. O repórter Hamilton de Almeida foi enviado a Caraguá pelo mar. E eu, por terra, as estradas da Serra do Mar sepultadas.

Manchete do Jornal da Tarde, talvez o primeiro a chegar à tragédia: AQUI JAZ UMA CIDADE."

O Diretor de Redação do Diário do Comércio, Moisés Rabinovici, que em 1967 trabalhava como repórter do JT, lembra as primeiras cenas daquela que era considerada, até anteontem, a maior tragédia da História do Brasil provocada por chuvas, em apenas um dia.

Após dois dias de chuvas constantes, a manhã daquele sábado ficaria marcada para sempre na história de Caraguatatuba, Litoral Norte de São Paulo, quando uma avalanche de pedras, árvores e lama desceu da Serra do Mar e destruiu a cidade.

O episódio, conhecido na época como hecatombe, provocou muitas mortes. Segundo as autoridades, teriam passado de 500, embora nunca tenha sido contabilizado um número oficial.

A cidade ficou isolada e 3 mil dos 15 mil moradores perderam suas casas. Um balanço feito em 21 de março apontava que 30 mil árvores haviam descido as encostas e se espalhado pela cidade. O rio Santo Antonio, que corta a cidade, passou de 40 para 200 metros de largura. Para qualquer lado que se olhasse, a Serra do Mar apresentava deslizamentos como os que afetaram Angra dos Reis e Ilha Grande, no litoral sul do Rio de Janeiro, no ano passado.

Ofício – Mesmo que a enchente de 1967 tivesse levado as últimas construções históricas de Caraguatatuba, a documentação sobre chuvas na cidade é bastante farta. Um ofício do então presidente da província de São Paulo José Joaquim Fernandes Torres, datado de 21 de fevereiro de 1859, já alertava que "devido aos repetidos temporais de pesadas chuvas, que há mais de um mês desaba em todo o município, em especial um que houve no dia 20 de janeiro, por um pouco não arrasa Caraguatatuba."

O "por um pouco", citado no livro Santo Antonio de Caraguatatuba - Memória e Tradições de Um Povo, do historiador Jurandyr Ferraz de Campos, acabou acontecendo 108 anos depois e apenas 20 anos após a elevação da cidade a estância balneária, em 30 de novembro de 1947.

A tragédia foi tão impactante que o governo decidiu criar a Defesa Civil Estadual, uma resposta à falta de coordenação dos órgãos públicos para tratar de catástrofes como aquela, que também é lembrada como o dia em que a serra caiu.
Diário do Comércio





Os deslizamentos em Caraguatatuba 1967


Enviado por: Aldo C. Santos em 19:22 às 07/01/2010
O verão 1966/67 foi bastante chuvoso em várias áreas do Sudeste. Caraguatatuba teve chuvas acima da média em todos os meses da estação (Dados do posto pluviométrico do Bairro Rio do Ouro, médias entre parênteses). Dezembro/1966: 440,7 mm (265), 29 dias de chuva - Janeiro/1967: 541,2 mm (280), 31 dias de chuva - Fevereiro: 268,6 mm (260) 28 dias de chuva - Março (Até dia 18. Sem dados o resto do mês): 415,7 mm (230), 18 dias de chuva. Como se pode ver, contando as precipitações fracas, choveu praticamente todos os dias. No dia 17/03 o posto em questão registrou 50,4 mm, sobre um solo já totalmente encharcado. Do dia 17 para o dia 18, mais 195,5 mm. No dia 18, um sábado, no início da tarde, segundo relatos da época, uma avalanche de lama, pedras, milhares de árvores inteiras e troncos desceu das encostas da Serra do Mar, pelo vale do Rio Santo Antônio (Que nasce na serra e deságua no mar, atravessando a cidade), arrastando tudo que havia pela frente, inclusive a ponte. A maior parte do trecho de serra da SP-99 (Rodovia dos Tamoios, que liga São José dos Campos a Caraguatatuba) desapareceu serra baixo, junto com as encostas. Cerca de 400 casas sumiram debaixo da lama e a cidade ficou com mais de 3.000 desabrigados (20% da população na época), pelo menos um ônibus lotado e alguns veículos, que trafegavam na estrada, desapareceram. Fala-se em 200 mortos mas nunca se soube o total exato; dezenas de desaparecidos jamais foram encontrados, possivelmente arrastados para o mar. A cidade ficou dias sem telefone e energia elétrica e meses sem acesso a São José dos Campos. O trecho de serra da rodovia SP-99 teve de ser totalmente reconstruído e hoje quase não há vestígios da estrada antiga. É o maior deslizamento de encostas que se tem notícia no Brasil. - Banco de Dados Pluviométricos do Estado de S. Paulo
Climatempo






AGORA, MORTOS E LAMA
Publicado na Folha de S.Paulo, terça-feira, 21 de março de 1967
(Neste texto foi mantida a grafia original )

Caraguatatuba está sob a lama, Sabado à tarde, depois de três dias de chuva, começou o deslizamento dos morros. Arvores foram arrancadas e arrastadas pela enxurrada, levando pessoas, animais e casas. Toda Caraguatatuba, desde a praia Martim de Sá - onde se sai para Ubatuba - até a Santa Casa, do outro lado da cidade, foi varrida. Oitenta corpos já foram recolhidos muitos deles ainda não identificados e por ora não se pode prever o numero de mortos: muitos lugares populosos não podem ser atingidos.
Por terra não se chega ao litoral Norte. Na estrada Paraibuna-Caraguatatuba a partir do Mirante, no quilometro 194, até o quilometro 199, trinta barreiras cairam, obstruindo a estrada. E no quilometro 202 a estrada desapareceu, levada pelas aguas, em quase dois mil metros. Aí, no sapé de um morro, isoladas de tudo e de todos, pessoas acenam desesperadamente para os helicopteros que passam ao longe.
Outra familia está ilhada num precipicio, na estrada. Caiu tudo ao redor e eles ficaram presos numa Kombi. Estão lá desde sabado, homens, mulheres e crianças. Hoje de manhã um helicoptero do Centro Tecnico de Aeronautica, de São José dos Campos, tentará a salvamento.
A primeira turma de salvamento chegou a Caraguatatuba no domingo de manhã. O transporte foi feito em rebocador, de Santos a São Sebastião, de lá em barco de pesca até Caraguatatuba. Eram soldados, enfermeiros e medicos. Outra turma, formada pelo delegado de Ubatuba, saiu de madrugada, por rodovia, e só chegou às quatro da tarde.
Logo depois do rebocador "Sabre", seguiu o navio oceanografico "Almirante Saldanha", levando esquipamento de socorro de emergencia e generos alimenticios. Era esperado de volta pela madrugada, trazendo para Santos 500 desabrigados e feridos. Tambem foi mobilizado o petroleiro "Mato Grosso", da Fronape.
Ontem o navio "Rio das Contas" deixou o Colegio Naval, em Angra dos Reis, e foi para Caraguatatuba para retirar feridos e desabrigados. Tambem o rebocador "Tritão" partiu da Guanabara levando mil litros de gasolina para o reabastecimento dos helicopteros da Marinha.
Às 21 horas o QG da Força Publica recebeu pelo radio aviso do comando do 5º Batalhão Policial de Taubaté, informando que a tropa que seguiu por terra já alcançou Caraguatatuba. O sistema de energia eletrica foi restabelecido parcialmente.
Para os primeiros socorros, a Força Publica mobilizou 350 homens, entre oficiais e praças, pertencentes a oito unidades, de São Paulo, Taubaté e Santos.
A equipe que chegou ontem a Caraguatatuba levou emissora de radio portatil, que transmitirá para o QG os dados que forem sendo colhidos.
A informação da Policia Rodoviaria é de que a estrada de Paraibuna a Caraguatatuba poderá ficar interrompida por três meses. Uma variante deverá ser aberta, mas todos os homens e maquinas disponiveis foram deslocados para trabalhar na estrada entre Ubatuba e São Luís do Paraitinga, tambem interrompida, mas que está em condições de ser recuperada nos proximos dias.
Acervo da Folha de São Paulo








Fotos da época









Atualização 31/01/16
Dica recebida de documentário no youtube com testemunhas. 



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Atualização 21/03/18
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Texto da minha prima Rosana de Castro, moradora de Caraguatatuba

Catástrofe de 1967: O dia que a Serra caiu

CASTRO, Rosana de. Caraguatatuba: Por trás da modernidade, o passado esquecido – trabalho de conclusão de curso de Jornalismo, da Universidade de Taubaté, 1999. (Orientação do professor Lourival da Cruz Galvão Júnior)
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** Republicado na edição de 150 anos da Prefeitura Municipal de Caraguatatuba.

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“Eu tinha quatro anos e estava debruçado na janela quando vi o Morro do Cruzeiro deslizar feito uma gelatina, inundando todo nosso bairro de lama, deixando as casas com cerca de um metro e meio de altura de terra”, recordou o autônomo Alfredo Constantino Filho, hoje com 36 anos. Esse foi apenas um dos deslizamentos ocasionados pela tromba d’água, que se abateu pelo município em 18 de março de 1967. Além de muitas casas, o fenômeno climático também soterrou um pouco da história de Caraguá, levando casas, pontes, documentos, entre outros.
Segundo o jornal “A Gazeta”, de São Paulo, de 13 de abril de 1967, até então tinham sido encontrados 82 corpos. Sabe-se que ao final do período trágico, o número de mortos chegou a 214, e 90 pessoas ficaram desaparecidas. As cidades vizinhas não souberam do acontecimento e nem sofreram desmoronamentos, mas muitos moradores de Caraguá ficaram isolados, sem energia e sem comunicação, durante três dias.
No começo do ano de 1967, segundo os dados do pesquisador Arino Sant’ana, ocorreram constantes chuvas, que se prolongaram nos meses de fevereiro e março. Isso encharcou o solo das ruas do município e também a Serra do Mar, que era composta por uma vegetação sem raízes profundas, chamadas por especialistas de graméticas por não se prenderem às rochas. Devido às abundantes chuvas, tais raízes foram se enfraquecendo, e o mesmo aconteceu com as terras que sustentavam as vegetações, conforme os documentos da época. Muitas pessoas tiveram suas residências destruídas, entre elas a Dona Rosária Carlota, uma das primeiras moradoras do bairro Massaguaçu. Rosária conta que foi a única a ter sido lesada, em seu bairro, pelo fenômeno climático. “Isso aconteceu porque atrás de minha casa encontravam-se as águas de uma cachoeira e de um lago. Com a grande quantidade de chuva, o nível das águas aumentou, levando metade de minha casa. Por esse motivo, o rio veio parar na porta de minha cozinha”, recorda.
Outra família que sofreu com a tragédia foi a do já falecido Sebastião Moreira César. Ele era dono de grande parte do bairro hoje conhecido como Jaraguazinho, que fica localizado no “pé da serra do mar”, sendo o último bairro de Caraguatatuba, na beira da Rodovia dos Tamoios. Segundo relatam suas filhas Nair Moreira César e Maria Ângela Moreira César, esse foi um dos locais mais atingidos. Nair relembra que algumas casas rodaram barranco abaixo. “Outras foram soterradas – inclusive a minha – que tinha acabado de ser construída. Nada restou na várzea, obrigando todas as famílias a se abrigarem na única casa que restou – a de meu pai – localizada no alto de um morro existente no local”, explicou. Maria Ângela relatou que “a tragédia obrigou a população ali existente a se reestruturar aos poucos. A água do rio que alimentava todas as famílias ficou suja e não havia maneira de utilizá-la. A única água que podia ser usada era a que começou a minar embaixo dos morros. As nossas plantações e a lavoura de subsistência foram destruídas”, recordou.
As águas do Rio Santo Antônio, que atravessa a cidade, também estavam com um nível muito superior e isso também aconteceu igualmente no mar.
Várias casas caíram, deixando grande parte da população desabrigada. Nuvens escuras cobriam o céu e, em determinado momento, de acordo com os relatos contidos nos documentos do autodidata Sant’Ana, e no arquivo histórico da cidade, um forte barulho foi ouvido pelos moradores, e em seguida, a Serra do Mar teve sua encosta completamente destruída.
A tromba d’água ia descendo os morros e destruindo tudo por onde passava, arrastando inclusive as grandes árvores existentes na região. Até a ponte de concreto próximo à Santa Casa foi “destroçada”, isolando grande parte da população, que ficou impossibilitada de atravessar o rio Santo Antônio. O morador mais antigo do bairro Rio do Ouro, Leopoldo Ferreira Louzada, 93 anos, conta que no dia da Catástrofe teve um sonho, que o alertava a não sair de casa, “mas eu saí, e acabei sendo surpreendido pela forte correnteza, que tornou indomável o leito do rio. Eu acabei rodando com as águas, mas graças a Deus consegui sobreviver”.
A força da catástrofe, de fato desbarrancou os leitos dos rios, deixando-os com muita força, e nas águas incontroláveis corriam pedaços de troncos, além de casas, raízes de árvores e até corpos humanos, de acordo com os documentos da época, guardados pelo pesquisador Sant’Ana. As primeiras providências tomadas pelos próprios moradores e funcionários da Prefeitura, foram no sentido de levar parte dos desabrigados para a escola Adaly Coelho Passos, localizada na região central da cidade, já que muitos resolveram ficar em suas propriedades, objetivando salvar seus lares do episódio fatídico.
Na Casa de Saúde Stella Máris, também na região do centro, que na época já era dirigida pelas freiras do Instituto das Pequenas Missionárias de Maria Imaculada, todos os funcionários, incluindo os médicos, enfermeiros, e as próprias irmãs, transferiram todos os doentes para o andar de cima, onde funcionava a “clausura”, aposento das irmãs, considerado inviolável. Isso porque na parte de baixo do prédio a água invadiu os corredores, por onde passavam pedaços de madeira e destroços. Outro local bastante atingido pela tragédia foi a Fazenda dos Ingleses, que teve toda sua plantação destruída. As frutas que eram exportadas pelos ingleses foram todas destruídas, pondo fim ao sustento de mais de cem famílias.
Instaurou-se o caos. Ilhados por todos os lados, os moradores não tinham a quem pedir auxílio, até que o radioamador Tomaz Camanis Filho conseguiu realizar um contato. As primeiras tentativas de fazer o rádio funcionar foram bastante difíceis por não haver energia elétrica. Mais tarde, voluntários conseguiram fazer um gerador de energia funcionar na Delegacia de Polícia local. O primeiro apelo foi feito ao engenheiro Eni Dias Vianna, que na ocasião estava à frente do DER (Departamento de Estradas de Rodagem), em Taubaté, que em seguida pôs a par da situação as autoridades estaduais.
Dois dias depois, em 20 de março, o governador do estado de São Paulo na época, Abreu Sodré, chegou à cidade de helicóptero e sobrevoou toda a região, ficando impressionado com tudo o que viu. Novas providências foram tomadas. No dia 27, foi a vez de vir a Caraguá o secretário de Saúde Valter Leze, trazendo também de helicóptero, medicamentos e vacinas para a população. Vieram também alguns médicos São José dos Campos, helicópteros da FAB (Força Aérea Brasileira), que transportaram os doentes para cidades vizinhas, além do pessoal do Exército, Marinha e Aeronáutica, na tentativa de prestar socorro.
Segundo relatos dos jornais da época, uma das situações mais dramáticas esteve relacionada aos 41 cadáveres colocados no pátio da Prefeitura. O sol forte fez com que os corpos entrassem em estado de decomposição. Somente depois da autorização dos médicos, os cadáveres foram colocados em sacos plásticos, lado a lado, na margem do rio Santo Antônio. Voluntários transportaram nas costas as vítimas da tragédia para o outro lado do rio, através de uma corda, para serem enterrados no cemitério municipal.
Depois de uma catástrofe como essa, somente uma parte da população ainda resolveu apostar na reconstrução da cidade. Muitos se mudaram para a Capital e cidades do Vale do Paraíba, tendo apenas a lembrança do dilúvio, que destruiu muitos dos sonhos das famílias. Os que ficaram em Caraguá viram a possibilidade de fazer deste, o marco zero para a construção de uma nova cidade, com poucas marcas do passado. Hoje vê-se que isso foi possível. Contudo, o que as pessoas não perceberam então, aconteceu: o passado, ou grande parte daquilo que foi vivido pela população antes de 1967 foi destruído, e o pouco que restou foi deixado à margem, caracterizando o município como moderno, aconchegante, e com traços futuristas, mas sem resquícios de seu passado remoto.




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Chuvas, enchentes, inundações - um VELHO problema.

Trecho da carta escrita pelo padre José de Anchieta a P. Diogo Laines, em Roma, na qual revela-se que as enchentes fazem parte do cotidiano dos moradores de São Paulo desde o início da fundação da cidade.







São Vicente, 31 de maio de 1560

A Paz de Cristo esteja conosco

Em primeiro lugar (o que em carta precedente toquei de passo) esta parte do Brasil, que se chama S. Vicente, dista a Equinocial para o Sul,vinte e três graus e meio, medidos de Nordeste a Sudoeste. Não me é fácil explicar nela a aproximação e afastamento do Sol, o curso dos astros, a diversa inclinação das sombras, as fases da lua, porque nunca estudei estas coisas; mas não vejo razão para que sejam diferentes do que se observa lá (na Europa).

A duração das partes do ano é que é muito diferente e tão confusas que não se podem distinguir com facilidade nem assinalar tempo determinado à primavera nem ao inverno. O sol nos seus giros produz uma certa temperatura constante, de maneira que nem o inverno regela com o frio, nem o verão é demasiadamente quente.

Em nenhum tempo do ano param as chuvas e, de quatro, de três em três ou até de dois em dois dias, se alterna a chuva com o sol. Contudo, há anos em que se fecha o céu e não chove, de forma que, não pela força do calor que nunca é excessivo, mas por falta d’água, secam os campos que não dão os costumados frutos; e algumas vezes chove demais e apodrecem as raízes de que nos alimentamos. Os trovões ribombam com tal estampido que causam muito medo mas raro caem raios, e é tanto o fulgor dos relâmpagos que deslumbram e obscurecem a vista e parecem disputar ao dia o esplendor de sua luz, e acompanham-se de violentas e furiosas ventanias, às vezes tão impetuosas, que altas horas da noite nos vemos forçados a recorrer à oração contra os perigos das tempestades e até a sair de casa para escapar à ameaça dela cair.

Com os trovões tremem as casas, caem as árvores e tudo se conturba. Não há muitos dias, estando em Piratininga, depois do pôr do sol, de repente começou a turvar-se o ar, a enevoar-se o céu, a amiudarem-se os trovões e os relâmpagos; o vento Sul envolveu a terra pouco a pouco até chegar ao Nordeste, donde quase sempre costuma vir tempestade, ganhou tal violência que parecia o Senhor ameaçar com a destruição. Abalou casas, arrebatou telhados, derrubou matos, arrancou pelas raízes grandíssimas árvores, partiu ao meio ou destroçou outras, de maneira que nos matos se taparam os caminhos sem ficar nenhum. Em meia hora (que não durou mais) é de espantar quanta devastação produziu em árvores e casas; e na verdade se Deus não abreviasse aquele tempo nada poderia resistir e tudo se arrasaria. E o mais admirável é que os índios, então entretidos em seus beberes e cantares (como costumam), sem nenhum temor a tamanha confusão das coisas, não deixaram de dançar nem de beber, como se estivesse tudo no maior sossego.

Mas vou dizer outra coisa,que V.P (Vª. Paternidae) julgará se é mais digna de lástima ou de riso, e talvez deplore a cegueira e zombe da loucura. Não eram passados muitos dias depois dessas coisas, vindo a uma aldeia de índios um padre e eu a trazer o remédio da alma e do corpo a um doente, achamos um feiticeiro de grande fama entre os índios.

Exortámo-lo a que deixasse as suas mentiras e reconhecesse a um só Deus, Criador e Senhor de todas as coisas; depois de longa(digamos assim) disputa, ele disse: “Também eu conheço a Deus e o Filho de Deus, e há pouco, mordendo-me o meu cão, mandei chamar o Filho de Deus que me trouxesse remédio e ele veio logo, e irado contra o cão, trouxe consigo aquela impetuosa ventania, que derrubou os matos, e me vingou do mal que o cão fizera”. Isto disse ele. E respondendo-lhe o padre “mentes”, as mulheres já cristãs, que aí estavam e a quem ensinamos, não puderam conter o riso, escarnecendo a loucura do feiticeiro. E não digo mais por não ser para este lugar, mas não virá fora de propósito advertir que não parece insolência a palavra “mentes”, porque os brasis não costumam usar de circunlóquios em explicar as coisas. De forma que a palavra “mentes” e outras dessa qualidade proferem sem ofensa; e até as que significam os membros secretos de ambos os sexos, a cópula e outras dessa natureza, as proferem cruamente sem vergonha nenhuma.

As estações do ano (olhando de perto) são inteiramente às avessas de lá;no tempo em que lá é primavera cá é inverno e vice-versa;mas não tão temperadas que não faltam no inverno os calores do sol para suavizar o rigor do frio, nem no verão as brandas brisas e as úmidas chuvas para regalo dos sentidos; ainda que (como já disse) esta terra de beira-mar, é quase todo ano regada pela água da chuva. Mas em Piratininga (que fica no interior a trinta milhas daqui, engalanada de campos espaçosos e abertos) e noutros lugares, que se lhe seguem para o ocidente, de tal modo se houve a natureza que quando o dia é mais abrasador com o calor do sol (cuja maior força é de novembro a março) vem a chuva trazer-lhe refrigério; o que também aqui acontece.

Para resumir em poucas palavras: no tempo da primavera e do verão é muito grande a abundância das chuvas, como a temperar os ardores do sol, de maneira que vêm de manhã antes da força do calor ou à tarde depois dele. Na primavera, que principia em setembro, caem abundantes e freqüentes chuvas com grandes tempestades de trovões e relâmpagos.

Há então as enchentes dos rios e as grandes inundações nos campos, tempo em que com pouco trabalho se toma entre as ervas grande quantidade de peixes que saem do leito dos rios para pôr os ovos, o que de algum modo compensa o prejuízo da fome que causam as inundações. Este tempo é esperado com grande avidez para alívio da fome e os índios chamam-lhe piracema, que quer dizer “saída do peixe”. Dá-se duas vezes por ano, por setembro e dezembro; é às vezes com mais freqüência. Deixam os rios e se metem nas ervas com pouca água para desovar; e no verão, quando é maior a inundação dos campos, saem mais abundantes cardumes que se apanham em pequenas redes e até á mão sem nenhum aparelho.

Assim, pois, todos os calores do verão se temperam com a abundância de chuvas; mas no inverno (passado o outono, que começa em março numa temperatura intermédia) acabam as chuvas e a força do frio torna-se mais aguda em junho, julho e agosto, tempo que vimos com freqüência as geadas espalhadas pelos campos crestarem quase toda árvore e erva, e a superfície da água coberta de gelo. E então os rios descem e baixam até o fundo, de maneira que com as mãos se costuma apanhar entre as ervas grande quantidade de peixe.




Diário do Comércio

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